O Mito da Auto-Estima
O conceito de autoestima surge hoje como uma condição indispensável ao bem-estar da criança, amplamente promovida nos manuais do tipo pronto-a-pensar. Recorrendo à utilização corrente do termo, algumas crianças têm uma maior autoestima quando brincam e sonham, outras revelam falta dela em certos aspetos do contexto escolar, ao falar com um professor, ao relacionar-se com um animal, ou noutro contexto qualquer. No entanto, este conceito não passa de uma ilusão do projeto humano, vendido ao desbarato pela psicologia dos anos 80. A tristeza, a falta de confiança ou a timidez de uma criança nada têm a ver com a chamada autoestima.
O que condiciona tudo isso é a estrutura do ego, do superego, do inconsciente pessoal e do inconsciente coletivo – ou seja, o «Eu» - em relação ao narcisismo, esse, sim, fundamental para que todos consigam humanizar-se e ser capazes de amar alguém. Se o narcisismo for saudável, por mais fases tristes que uma criança passe, por mais timidez que sinta, ela sabe que pode sempre recorrer ao amor que a relação com a mãe lhe dá – seja muito ou pouco.
O narcisismo saudável dá à criança a coerência necessária para sentir que vale a pena como pessoa, mesmo que às vezes não seja capaz de o reconhecer. Mesmo que passe por fases depressivas, a bem ou a mal esta criança continuará a buscar a harmonia e a felicidade, porque a estrutura básica está lá. Pode até não o fazer da forma mais coerente, com birras e gritos do tipo «não gosto de ti!». Por mais que incomodem ou magoem os pais, não passam de maneiras de expressar a inferioridade que a criança sente. A tentação imediata dos adultos pode ser para atenuar esse mal-estar, mas é preciso ter em conta que socorrer de imediato um bebé que chora, ou satisfazer logo tudo aquilo que a criança quer, pode contribuir para o aparecimento de um narcisismo exacerbado.
Se a dose de narcisismo for sadia, a criança sente-se importante para os amigos, pensa que eles vão gostar das brincadeiras que partilham, que merece o afeto da educadora. Pode até ter a esperança de que o desenho dela seja o melhor que a professora já viu – uma esperança natural de alguém que sente que ascendeu ao altar dos deuses.
Não se trata de uma questão de autoestima – essa característica perseguida por todos os meios, que leva muitos pais a impor aos filhos regras que nem sempre têm em conta a essência deles. Na verdade, estas soluções são instantâneas são frequentemente adotadas porque os adultos podem ter dificuldade em compreender as crianças e em saber o que fazer com elas. Se aceitarem que eles próprios podem estar a falhar, se perceberem que podem contribuir para a dificuldade de adaptação da criança, então é possível que tenham descoberto a chave do problema.
Quando a criança sente que os pais a valorizam, aceita mais facilmente que eles tentem controlar a sua sensação de omnipotência, as birras e até os seus atos mais destrutivos. Sobretudo se o fizerem com amor, compreensão e carinho. Desta forma, a longo prazo, a criança terá oportunidade de expandir o altruísmo e de se adaptar casa vez mais ao meio ambiente.
A criança não tem de ser nem o pai nem a mãe dos pais apenas para os fazer sentir melhor – pelo contrário. É aos adultos que cabe a responsabilidade de ajudar a criança, mesmo que tenham de lidar com o seu desespero. Por mais complexo que seja, é certamente a solução mais humana e eficaz para o futuro.
Não faltam manuais de instruções para adaptar a criança a um padrão que é tido como certo. Muitas vezes, no entanto, eles limitam-se a conter regras comportamentais tão válidas para crianças como para animais de estimação. Impor normas rígidas pode alterar os comportamentos durante um determinado período de tempo, ou ajudar a criança a tirar uma nota positiva numa disciplina onde ela se confronta com um professor que lhe pode dificultar a vida. Há, no entanto, uma questão: aqui, a estratégia implica reconhecer que a criança é má e moldá-la a um mundo aparentemente perfeito. Os adultos adotam-na às suas intolerâncias, lançando críticas como: «No meu tempo, havia respeito.» Mas que respeito é esse que ignora a humanidade? Onde fica o direito da criança a que a compreendam? O que é que os pais pretendem verdadeiramente: que os filhos apenas os temam ou que os respeitem?
Por este motivo, é realmente importante compreender os mecanismos do narcisismo. Abordagens comportamentais que querem impor à criança um projeto humano aumentam a probabilidade de o narcisismo se tornar patológico – a psicanálise chama-lhe, metaforicamente, «feridas narcísicas» ou «feridas primárias», a que nos dedicaremos no próximo capítulo.
Os planos comportamentais até podem fazer sentido, mas com conta, peso e medida, e se nunca esquecerem o objetivo de ajudar a criança a adaptar-se ao contexto que a envolve, nem destruírem as bases da sua personalidade. Se a única finalidade for incutir regras, permito-me a provocação: mais vale inscrever a criança no serviço militar. Pelo menos lá têm longa experiência na matéria.
Por outro lado, se um adulto conseguir identificar-se com a criança, e daí resultar empatia, a comunicação entre os dois será certamente mais fácil, dispensando um plano comportamental rígido. A criança deve ter um ambiente estruturado que lhe permita interiorizar as regras e também alguém que a ajude a adaptar-se a esse contexto. É importante que os pais deem o exemplo e que não exijam aquilo que não fazem.
Mais do que um plano comportamental, a família tem mais a ganhar, como um todo, se os pais procurarem perceber aquilo que falta à personalidade dos filhos e o que a personalidade deles tem em demasia. Quando o ego expressa uma omnipotência exacerbada, um narcisismo excessivo, a prioridade é ajudar a criança a ultrapassar a raiva provocada por aquilo a que se chama descompensação da omnipotência.
A tarefa costuma ser exigente, já que o processo corre o risco de despertar na criança sentimentos de inferioridade que podem provocar raiva, inveja, ciúmes, entre outros sentimentos. É possível que ela se sinta inadequada e que os pais se desorganizem, perdendo o rumo ao coração do filho. Em vez de verem nele a criança real, concentram-se na imagem de uma criança danificada, muito diferente daquela que idealizaram. Naturalmente, a sincronização emocional torna-se difícil, cedendo lugar à ansiedade, aos sentimentos de culpa, à vergonha e à raiva que tanto afetam os pais como os filhos, num efeito bola de neve.
A alternativa passa por tentar entender a razão que leva a criança a sentir-se inferior e a ter problemas de relacionamento com os outros. Se os pais conseguirem sentir o que ela sente, irão ajudá-la a regular-se fisiológica e mentalmente. E aqui o motivo de orgulho não deve ser o facto de conseguirem que ela cumpra regras, mas sim o reconhecimento de que conseguem tratá-la de forma humana, procurando genuinamente ajudá-la a ultrapassar os problemas de adaptação.
A longo prazo, a vantagem é enorme. Ao sentir que os pais a apoiam, a criança aprende melhor a controlar a raiva, o ciúme e a angústia da omnipotência, e aceita melhor a frustração. Se o processo correr minimamente bem, este suporte dar-lhe-á maior disponibilidade emocional para os outros a curto ou longo prazo: no imediato, podem notar-se diferenças no relacionamento com os colegas ou professores; daí a alguns anos, esses efeitos poderão até afetar os laços amorosos que estabelece."
Excerto do livro Um Mapa Para Chegar ao Coração da Criança, de Miguel Mealha Estrada. Oficina do Livro